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Educação a Distância

De olho nos desafios da EaD, reitor e pró-reitor visitam comunidades no Jalapão

Escrito por Bianca Zanella | Publicado: Viernes, 16 Diciembre 2022 13:25 | Última actualización: Viernes, 16 Diciembre 2022 17:55

Viagem teve como objetivo ouvir estudantes e estreitar parcerias para fortalecer projeto de ações afirmativas de cursos de graduação ofertados por meio do programa Universidade Aberta do Brasil

Até aonde a educação pode chegar? Quais as barreiras que ainda distanciam jovens e adultos da educação e o que é possível fazer para superar esses obstáculos? Essas foram perguntas que rondaram diversas conversas durante três dias em que o reitor da Universidade Federal do Tocantins, Luís Eduardo Bovolato, e o pró-reitor de Assistência Estudantil, Kherlley Barbosa, estiveram nos municípios de São Félix do Tocantins e Mateiros, no começo de dezembro. A convite de lideranças locais, nos dias 2, 3 e 4 desse mês, eles compareceram a uma cerimônia com estudantes concluintes do curso de licenciatura em Biologia, em São Félix, onde também se reuniram com integrantes da administração municipal. Além disso, eles participaram de rodas de conversa com alunos nas comunidades quilombolas do Prata e do Mumbuca para discutir ações de inclusão nos cursos de graduação a distância ofertados pela UFT.

Reitor, pró-reitor e estudantes da comunidade quilombola Mumbuca, em Mateiros (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Reitor, pró-reitor e estudantes da comunidade quilombola Mumbuca, em Mateiros (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Com o programa Universidade Aberta do Brasil (UAB), criado em 2006 pelo Ministério da Educação, os cursos de graduação na modalidade EaD chegaram para realizar a promessa da educação a distância de levar oportunidades de formação superior a, praticamente, qualquer lugar ao alcance das tecnologias de comunicação. A expectativa de expansão do acesso ao ensino superior, de fato, vem se cumprindo com a formação de centenas de estudantes por meio do ensino híbrido ou remoto. No entanto, para moradores de locais distantes dos centros urbanos, como é o caso de comunidades tradicionais do Jalapão, a EaD fez a universidade chegar mais perto, mas a distância entre o sonho de estudar e a conquista do diploma, na realidade, ainda é longa e cheia de obstáculos.

Não por acaso, quando a UAB completou dez anos de implantação, em 2016, o programa já havia formado mais de 100 profissionais pela UFT sem, contudo, ter qualquer registro da participação de indígenas ou quilombolas. Em 2017, uma recomendação do Ministério Público Federal acendeu, definitivamente, um sinal de alerta: a UFT, que foi a primeira universidade federal brasileira a instituir cotas específicas para esses grupos, precisava fazer mais para garantir a efetividade das políticas de inclusão. “Estava claro que havia – e ainda há – uma grande distância entre o que as nossas resoluções e a própria Lei 12.711/2012 dizem sobre inclusão e a realidade”, explica Adriano Castorino, que ajudou a incubar e hoje coordena o projeto de ações afirmativas UAB-AF, na UFT. Para entender, ou mesmo “medir”, essa distância, é preciso sair dos limites dos câmpus e ir até as localidades onde se inserem essas comunidades, conversar com quem já percorreu ou está percorrendo esse caminho. Por isso, nessa trajetória, o Jalapão é uma parada obrigatória.

Situado no leste do estado do Tocantins, o Jalapão é uma região que integra um conjunto de cerca de dez municípios tocantinenses e faz divisa com os estados da Bahia, do Piauí e do Maranhão. É nessa área que se concentra boa parte da população indígena que vive no Tocantins, estimada em 14 mil pessoas, e um grande número de pretos e pardos remanescentes de quilombos: gente que fincou suas raízes na terra por gerações e gerações, com histórias que carregam as heranças dos povos originários e da escravidão. Nesse lugar de atrativos paradisíacos que viu sua fama dar um salto em 2018 ao virar cenário de novela, além das paisagens de cartões-postais, também se vê por todo lado o forte contraste entre riquezas naturais, culturais e turísticas e os baixos índices de desenvolvimento.

No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano por Municípios (IDHM), que considera a renda, a longevidade e a escolaridade da população, os municípios do Jalapão apresentam alguns dos piores resultados do estado. Mateiros e São Félix – os dois municípios abrangidos pelo Parque Estadual do Jalapão – ocupam a 102ª e a 131ª posições (de 139), respectivamente. No geral, Mateiros tem um IDH que é considerado médio e São Félix está na faixa de baixo desenvolvimento humano. Como grande parte da população tem poucos anos de estudo e o acesso ao ensino, de modo geral, é deficitário, o indicador da educação é muito baixo nos dois municípios, o que puxa o IDH para patamares inferiores, mesmo que os níveis de renda, quando isolados, sejam altos ou muito altos, no caso de Mateiros, alavancados especialmente pelo turismo que vem crescendo expressivamente nos últimos anos.

Para quem vive nessas localidades, mesmo um dos caminhos mais curtos até a formação superior e o sonhado diploma universitário é, literal e figurativamente, tortuoso. No sentido literal, até o câmpus mais próximo da Universidade Federal do Tocantins, em Palmas, são pelo menos 260km de São Félix e 305km de Mateiros por estradas precárias, e grande parte da população do Jalapão nem vive nas pequenas zonas urbanas dos municípios, mas em comunidades rurais ainda mais afastadas. Mesmo para quem mora nas cidades, a maior parte do percurso até a capital do estado não tem asfalto, apenas uma camada densa de poeira vermelha que se transforma em lama no período das chuvas. A água que rega o cerrado para fazer rebrotar o capim dourado e dar vida a tantas outras riquezas naturais também esculpe crateras profundas pela ação da erosão e alaga partes do caminho: um atoleiro por onde apenas motos ou caminhonetes com tração 4x4 conseguem avançar, dificilmente rodando a mais 60km/h. Nesse terreno, viagens que durariam de quatro a cinco horas e meia em condições normais podem durar muito mais no caso de imprevistos que, de tão comuns, já são quase uma rotina previsível para quem está acostumado a transitar por ali. Sem sinal de celular na maior parte do caminho ou postos de serviços, basta um pneu furado, um problema mecânico, uma roda atolada ou falta de combustível que só Deus sabe a hora que se vai chegar, como pôde comprovar o próprio reitor e sua pequena comitiva durante a viagem.

No sentido figurado, a ligação entre a universidade e quem vive no Jalapão se dá por dois elos: um deles é a internet. O outro é o contato direto com quem representa a Instituição e está mais perto das comunidades, para além das telas, dos aplicativos de mensagens e das trocas de e-mails. Como a conexão com a internet é fraca e as chuvas que maltratam as estradas também criam diversos obstáculos nessa via de comunicação, que fica ainda mais instável nesse período, os moradores se apegam e confiam, principalmente, na conexão entre pessoas. Por causa disso, nessa relação, o coordenador do projeto de ações afirmativas acaba sendo levado a assumir diversas atribuições que vão muito além de funções administrativas e de orientação pedagógica: é professor de computação e técnico de informática, quando os alunos não sabem ou não conseguem realizar os procedimentos necessários no computador; é secretário, conferindo ou realizando, ele próprio, as inscrições e matrículas dos alunos; faz as vezes de “office boy” e despachante, “correndo atrás” de documentação para os estudantes e é, sobretudo, conselheiro motivacional. “Eu lembro lá do início, da correria para juntar e escanear os documentos, a gente nem sabia como fazer aquilo! E depois, com todas as dificuldades, todas as vezes que a gente pensava em desistir, ele ia lá conversar com a gente e dizia ‘Calma... no final tudo vai dar certo!’”, recorda a formanda do curso de Biologia, Jaqueline Messias, lembrando a frase que acabou virando um mantra entre os colegas e foi repetida em coro por toda a turma no encontro do reitor com os estudantes da UFT em São Félix.

Esse trabalho, que acontece fora e longe dos câmpus da Universidade, é confirmado por cada estudante que faz parte do grupo de ações afirmativas da UAB na UFT, e o empenho do coordenador é também reconhecido por outros membros das comunidades em repetidos e emocionados discursos de agradecimento. Assim, não é de se estranhar que Adriano seja conhecido e bem recebido por onde passa na região, e tenha criado um vínculo que lhe rendeu, nas palavras do reitor, o posto informal de “embaixador da UFT no Jalapão”.

Adriano Castorino sendo recebido pela Dotôra, na Comunidade Mumbuca (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Adriano Castorino sendo recebido pela Dotôra, na Comunidade Mumbuca (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

O projeto UAB-AF não tem uma equipe na Universidade além do próprio coordenador, mas conta com a articulação dos diferentes setores da UFT envolvidos e, principalmente, com importantes aliados nas comunidades que atuam na mobilização e dão suporte aos alunos mais diretamente. Em articulação com estudantes de mestrado e doutorado, e também com professores das escolas locais, o projeto promove a supervisão conjunta de trabalhos de conclusão de curso (TCCs) dos alunos – um trabalho importante de acompanhamento mais próximo que auxilia os estudantes a concluírem suas monografias e, na maior parte das vezes, é realizado de forma voluntária.

Além disso, como os moradores sabem da importância da iniciativa para o desenvolvimento da região e da comunidade, mesmo indiretamente muitos outros personagens fazem parte dessa história, ajudando como podem: não é sempre que se tem diárias para viagens até as comunidades, mas lá não falta quem ofereça pouso, almoço, café e o que mais puder para ajudar a viabilizar o projeto. Foi assim, através de uma soma de esforços, que a turma de estudantes de São Félix que acaba de concluir o curso de Biologia foi até a Bahia meses atrás, onde alunos puderam visitar laboratórios, conhecer importante ecossistemas e olhar, pela primeira vez, a imensidão da vida através das lentes de um microscópio.

Encontro com concluintes do curso de Biologia, em São Félix (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Encontro com concluintes do curso de Biologia, em São Félix (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Por causa dessa rede de cooperação, cada estudante que consegue se formar não representa, somente, uma vitória pessoal, mas é celebrado, genuinamente, como uma conquista de toda a comunidade e, como exemplo de superação, vai abrindo caminhos para os que vêm depois. “Para as pessoas daqui, as perspectivas são muito poucas de cursar uma graduação. Mas os primeiros alunos que ingressaram nesses cursos foram inspirando e motivando outros a estudar também, alguns já se formaram e começaram a atuar nas suas áreas e a gente vê o impacto positivo e a importância que isso tem para a nossa comunidade”, comenta a secretária municipal de educação de São Félix, Denise Cella.

Além da assistência aos alunos, o projeto UAB-AF presta apoio às coordenações dos polos presenciais (que são gerenciados pela Secretaria Estadual da Educação), às coordenações e aos professores desses cursos na UFT. Essa atenção especial à captação de indígenas e quilombolas para os cursos de graduação EaD e para o atendimento desses estudantes tem dado resultado. Segundo o coordenador do projeto, desde que a iniciativa começou, em 2017, 14 quilombolas se formaram pela UAB na UFT. Além disso, outros 48 quilombolas e nove indígenas estão matriculados e cursando as licenciaturas para se tornarem professores de Matemática, Biologia, Química, Física e Música. Do total de 75 alunos que já passaram pelo projeto, apenas quatro estudantes desistiram porque não se identificaram com os cursos oferecidos. Somente em 2022 foram 46 matriculados.

Conforme explica Castorino, o número de indígenas ainda é mais modesto porque além da exclusão digital das aldeias existem questões culturais mais profundas, como as barreiras relativas à língua, que dificultam ainda mais a inclusão desse grupo que, na verdade, também não é único nem homogêneo diante da diversidade dos povos indígenas no Tocantins. Contudo, para o coordenador, “esses números ainda podem parecer pequenos, mas representam um grande avanço diante de todas as dificuldades, especialmente quando comparados ao acesso desses grupos há alguns anos atrás, que era praticamente nulo”.

Ao enfatizar essas conquistas, Castorino faz sempre questão de lembrar que o projeto UAB-AF teve como uma das principais idealizadoras a professora Isabel Auler, enquanto integrante do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Educação, vice-reitora e reitora. “Esse projeto começou com ela, que infelizmente não pôde ver o que estamos fazendo”, disse ele, em referência à mentora que morreu em 2017. O coordenador lembra, ainda, o apoio da professora Ana Lúcia Medeiros, que assumiu a vice-reitoria após a morte de Isabel, na implantação da iniciativa.

 

Barreiras e oportunidades

Em 2021, ainda sob o impacto da novela “O Outro Lado do Paraíso”, exibida pela TV Globo, e da pandemia de Covid-19, o Parque Estadual do Jalapão chegou a receber mais de 55,5 mil turistas, batendo recorde de visitantes, segundo dados divulgados pelo Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins). Enquanto o turismo vive um momento de amadurecimento e consolidação, a expansão de lavouras vai redesenhando as fronteiras agrícolas na região, sobrecarregando a infraestrutura existente e trazendo enormes desafios logísticos, sociais e econômicos para a construção de um modelo sustentável e equilibrado de desenvolvimento. Não sem enormes dificuldades de mão-de-obra e transporte de materiais de construção, o número de pousadas, restaurantes e estabelecimentos comerciais vai se multiplicando pelos povoados, e a quantidade de turistas também só aumenta. Diante de tudo isso, cada vez mais os próprios moradores percebem a necessidade de capacitação.

“Eu tenho repetido muito que se as pessoas daqui não estudarem, não se qualificarem, vai vir gente de fora para aproveitar as oportunidades que estão surgindo”, comentou o prefeito de São Félix, Carlos Irael, conhecido na região simplesmente como “Carlão”, ao receber o reitor da UFT e o pró-reitor de Assistência Estudantil em uma reunião, que também teve a participação do vice-prefeito, Gercimar Xavier, da Secretária Municipal de Educação, Denise Cella, e dos vereadores Balzimar Ribeiro, Vernon Barbosa e Luiz Barbosa.

Reunião com lideranças do município de São Félix (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Reunião com lideranças do município de São Félix (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Apesar das dificuldades evidenciadas, com as boas experiências de integrantes da comunidade nos primeiros cursos na modalidade EaD ofertados, a prefeitura de São Félix pretende, agora, incentivar servidores do município a cursar a graduação em Computação, que tem inscrições abertas até janeiro de 2023. Como não há um polo da Universidade na cidade, a intenção é utilizar a escola municipal, que fica ociosa à noite, e buscar parcerias para garantir os equipamentos de informática necessários para que os alunos possam estudar. Assim, esse poderá ser o piloto de um novo modelo de polos para alunos da educação a distância estruturado pelas próprias comunidades e gerido com o apoio da UFT. “O município tem muito interesse nessas iniciativas e tem metas de apoiar a educação de nível superior”, frisou a secretária Denise Cella.

Com foco, principalmente, na formação de professores e de profissionais da administração pública, o programa UAB é mantido com recursos do Ministério da Educação (MEC) através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e conta com polos de apoio aos estudantes para atividades presenciais da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) em alguns municípios. A UFT é responsável pela parte administrativa e pedagógica dos cursos, quer dizer, pelo trabalho que é realizado pelos técnicos-administrativos e professores, mas não possui previsão orçamentária para a instalação de infraestrutura física nas comunidades onde vivem os alunos, ou mesmo para oferecer bolsas permanência a esses estudantes, já que os recursos para assistência estudantil são, por determinação legal, integralmente destinados a alunos dos cursos presenciais, conforme esclareceu o pró-reitor Kherlley Barbosa.

Segundo o coordenador do projeto UAB-AF, um protocolo de cooperação inicial possibilitou o ingresso e a formatura dos primeiros estudantes pelas ações afirmativas. “Agora é importante avançarmos nessa proposta para estabelecer mais claramente as contrapartidas de cada parte envolvida e fazer com que isso seja institucionalizado a fim de garantir que as ações tenham continuidade independentemente de eventuais mudanças de gestão no governo, na Universidade ou nas prefeituras”, defendeu Castorino.

“Hoje a tônica é cooperação entre as instituições. As prefeituras, assim como as universidades, não têm condições de realizar nada sozinhas, então precisamos identificar o que cada instituição pode fazer diante dessa realidade”, ponderou o reitor. Ainda durante sua fala na reunião com os gestores municipais, Bovolato lembrou que o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) 2021-2025 da UFT tem como forte componente a busca pela expansão e atuação da Universidade no interior do estado. “Só que essa expansão vai se dar num modelo diferente do que a gente está acostumado. A Universidade não vai poder chegar a todas as localidades com prédios, instalação de câmpus, de uma forma tradicional ou convencional... Isso vai acontecer em outros formatos, usando como recursos novas tecnologias, parcerias, modelos híbridos de educação...”, disse ele, ainda pontuando que a relação da Universidade com as comunidades não se dá apenas através do ensino, mas também por meio de diferentes projetos de pesquisa e extensão. “A UFT quer chegar mais longe e estar mais perto, só precisamos descobrir como”, ressaltou ele, deixando claro que o caminho da inclusão das comunidades tradicionais tocantinenses na Universidade ainda está sendo pavimentado.

 

Inclusão digital é o principal obstáculo, mas não o único

Diante do prédio abandonado que já foi uma escola, no pequeno centro do povoado quilombola do Prata, no município de São Félix, Ana Gercina Ribeiro da Silva desabafa: “eu queria que meus professores vissem esse meu celularzinho aqui, ó! Queria que eles me vissem no dia que eu enviei uma prova em cima de ‘um galho de pau’ porque era só ali que a internet pegava”, diz ela, que apesar de fazer graça com a situação não esconde a frustração por ter sido reprovada em uma disciplina por apenas quatro décimos. Pedagoga e pós-graduada em gestão escolar, ela é assistente administrativa e, a duras penas, tenta concluir a segunda graduação em Matemática na modalidade de licenciatura para buscar uma melhor colocação de trabalho. “Quantas vezes a gente fez uma prova e na hora de enviar caiu a internet? Já perdi prazo porque não tinha conexão, depois de ficar das 6h da manhã às 8h da noite tentando enviar uma atividade. Se a gente não quisesse fazer, a gente nem se matriculava.”

Ana Gercina e o colega Saulo mostram os celulares usados para fazer as atividades do curso de MatemáticaAna Gercina e o colega Saulo mostram os celulares usados para fazer as atividades do curso de Matemática

Ana Gercina continua descrevendo sacrifícios que toda a comunidade conhece muito bem. “Aqui quando a coisa aperta a gente vende uma galinha, costura um capim [referência aos artesanatos feitos de capim dourado], vende uma farinha... e segue estudando. Depois o dia que a gente passar em um concurso melhor ainda vão dizer que foi sorte!”, arremata ela, que busca no apoio do colega Saulo – o outro morador da comunidade que faz o curso de Matemática – forças para não interromper a formação. “Quando ele pensa em desistir eu não deixo, e quando eu penso em parar é ele quem não me deixa”, brinca.

Luzia Passos, 34 anos, que é monitora de escola e aluna do primeiro período do curso de Química, aumenta a lista dos “perrengues” que são comuns entre o grupo de estudantes: “tem atividades que no celular não abrem, e a gente não tem um computador. Tem horas que você tá tentando responder uma atividade e a internet cai... é sempre uma dificuldade...”

Luzia Passos, na comunidade do Prata (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Luzia Passos, na comunidade do Prata (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Como durante o dia quase todos trabalham, e a Associação de Moradores costuma receber visitantes com frequência, é normalmente à noite que os alunos param para se dedicar às atividades universitárias. Sem sinal de internet em casa ou no celular, o jeito é ir para a praça do povoado, onde todos se reúnem, e tentar encontrar algum espaço para se concentrar entre as brincadeiras das crianças e os passeios das famílias. “Às vezes eu fico aqui perto da Associação e o meu colega tem que ficar lá perto da escola, porque se os dois conectarem no mesmo lugar ao mesmo tempo a internet cai ou fica lenta”, conta Leni Francisca de Sousa, de 50 anos, que é professora das séries iniciais no município de São Félix e agora também estudante do curso de licenciatura em Música. Para ela, formada anteriormente em Pedagogia e pós-graduada em gestão educacional, toda a experiência no ensino superior foi a distância, quer dizer, semipresencial. Durante o curso de Pedagogia, ela ia ao polo onde assistia às aulas pela televisão. Agora, assiste as aulas via internet, na tela do celular. Entusiasmada com o novo curso, por conta própria ela já ensaia os primeiros acordes no recém-comprado violão, com o auxílio de algumas apostilas, enquanto anseia pelo começo das aulas práticas do curso de licenciatura. “O problema é que eu tenho muita dificuldade com essas tecnologias”, diz ela, mostrando o celular. Nessas horas, ela recorre à ajuda da irmã, Osirene, que também é pedagoga e hoje cursa disciplinas no Programa de Pós-Graduação em Educação.

A pedagoga Leni Francisca de Sousa, estudante do curso de licenciatura em Música (Foto: Bianca Zanella/Sucom)A pedagoga Leni Francisca de Sousa, estudante do curso de licenciatura em Música (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Processos como fazer o download de arquivos, editar, salvar em diferentes formatos e enviar para a “nuvem”, que são parte da rotina de estudantes da EaD e de muita gente hoje em dia, podem parecer simples para quem já tem familiaridade com essas tecnologias e pode contar com um computador e uma boa conexão com a internet. Para quem só pode contar com um celular básico, antigo, com uma tela pequena e uma conexão instável, tudo isso se transforma em uma dificuldade extra, que vai além do desafio de aprender os conteúdos próprios do curso. Os estudantes do curso de Música têm, ainda, a necessidade de equipamentos, programas e aplicativos específicos que permitam, por exemplo, a leitura de partituras, além de instrumentos musicais.

Roda de conversa na comunidade do Prata (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Roda de conversa na comunidade do Prata (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Problemas como esses se repetem nas outras localidades. Na comunidade do Mumbuca, localizada no município de Mateiros, a presidente da Associação de Moradores, Railane Ribeiro da Silva, desfia uma lista de necessidades ao longo de uma narrativa pontuada por gestos e expressões de confirmação entre todos os estudantes que participaram da roda de conversa. Lá, quando o reitor e o pró-reitor chegaram, era para todos se reunirem na escola local, mas a escola não estava aberta. A vizinhança se mobilizou, sem sucesso, para encontrar o responsável, mas aos poucos o grupo foi se reunindo mesmo pela rua, uns chamando os outros, mães puxando os filhos pequenos pela mão ou levando as crianças no colo, e a reunião acabou migrando para a sede da associação, que também funciona como centro cultural do povoado: uma casa simples de paredes de barro, teto de palha e chão batido equipada com uma pequena estante, alguns livros e cadeiras de plástico. “Aqui tudo é difícil. Já ficamos um mês e 18 dias sem internet aqui na associação. Teve aluno que para fazer a matrícula precisou subir numa moto e ir daqui a Mateiros abaixo de chuva. A gente precisava de pelo menos um espaço, simples que fosse, com internet boa, impressora, máquina de ‘xerox’... Assim os alunos iam poder pelo menos imprimir os textos para estudar em outros lugares, quando não tiverem conexão.” Outra reivindicação foi para que a Universidade simplifique os processos de matrícula para evitar a necessidade de os alunos autenticarem documentos em cartório – já que isso leva tempo e custa caro para os estudantes, que além de pagar pelo serviço precisam gastar com combustível para o deslocamento até as cidades.

Roda de conversa na comunidade Mumbuca (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Roda de conversa na comunidade Mumbuca (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

“Nós, enquanto Universidade, temos que nos movimentar para derrubar as barreiras que ainda existem dentro da própria Instituição”, reconheceu o reitor. “Nós sabemos que existem barreiras burocráticas e também resistências que persistem entre colegas que muitas vezes não conhecem essas realidades”, admitiu, observando que mesmo que a Universidade não possua recursos para destinar para a infraestrutura de polos educacionais fora dos câmpus, ou mesmo para a assistência estudantil dos alunos dos cursos na modalidade a distância, a Instituição pode atuar como articuladora de parcerias “O que a gente pode e precisa fazer é um movimento para sensibilizar outras instituições e também os nossos colegas para valorizar o esforço de vocês e contribuir na busca por soluções.”

“Seja saindo das comunidades rurais para morar nas cidades com câmpus e estudar nos cursos presenciais, seja permanecendo nas comunidades rurais e fazendo cursos a distância, a gente entende que todos os estudantes, com suas diferentes realidades, têm dificuldades para se manter estudando”, disse o pró-reitor de Assistência Estudantil, Kherlley Barbosa, ressaltando a necessidade de políticas públicas de permanência que contemplem os alunos das diferentes modalidades de educação. “A gente sabe que os alunos dos cursos EaD têm a necessidade de melhores equipamentos, têm os custos para ter internet no celular, e muitas vezes, também, o custo para se deslocar até lugares onde tem sinal de internet para poderem estudar, entre outras dificuldades. Mas hoje, infelizmente, nós ainda não temos recursos de assistência estudantil que contemplem essas questões. No entanto, com todas as mudanças que estão ocorrendo no perfil da educação superior, essa é uma demanda evidente. Há uma expectativa de revisão das políticas de auxílio permanência e nós vamos sempre reforçar essa pauta”, disse o pró-reitor. Ademais, ele acrescentou que, em 2023, a Proest deve lançar um edital específico de monitoria para indígenas e quilombolas estudantes de graduação. Com essa iniciativa, a Universidade pretende selecionar monitores que compreendam melhor essas realidades para auxiliar outros alunos com esse perfil.

 

Sonhos e lutas

A visita do reitor e do pró-reitor ao Jalapão traz à tona um perfil de estudantes diferente dos jovens conectados que habitam o imaginário de muitos quando se pensa em “universitários”. São pessoas muitas vezes mais velhas, que vivem em locais afastados ainda à margem das tecnologias digitais e colocam à prova a eficácia dos modelos educacionais, desafiando a Universidade a se reconhecer e se reinventar.

Quando se olha de perto, por trás de cada número de matrícula, fora do pequeno enquadramento das telas que intermediam a relação entre professores e alunos da EaD, é possível ver realidades que, embora a princípio pareçam repetitivas nas dificuldades, são únicas, repletas de lutas e também de sonhos. No encontro com os estudantes que conseguiram concluir seus estudos pela UAB, os representantes da UFT ouviram histórias comoventes de mães e pais que realizaram o sonho de ver os filhos se formar, de filhos e filhas que realizaram os seus sonhos – e o de seus pais – ao concluírem uma formação superior, e também de pais que, infelizmente, se foram antes de poder realizar esse sonho. Histórias como a de Beatriz Pereira dos Santos, que apresentou seu trabalho de conclusão de curso com o filho Gabriel nos braços, apenas dez dias depois de enfrentar horas pelas estradas tortuosas do Jalapão, em trabalho de parto prematuro, para dar à luz o bebê em Palmas.

A formanda Beatriz e o filho Gabriel (Foto: Bianca Zanella/Sucom)A formanda Beatriz e o filho Gabriel (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

Outra ex-aluna, Graciene Rodrigues, que se formou em Matemática, contou que foi à escola pela primeira vez aos 12 anos. “Minha mãe teve 11 filhos e não sabia nem escrever o ‘O’”. Eu e meus irmãos éramos os filhos “da outra”, porque meu pai tinha duas famílias”. A mãe morreu quando ela tinha 18 anos e mal tinha terminado a 8ª série, deixando quatro irmãos pequenos para ela cuidar. Assombrada pela fome, ela criou os irmãos menores e também um sobrinho. “Depois que eles estavam encaminhados foi que eu pude cuidar da minha vida”, lembra ela, que enquanto fazia o curso de Matemática calculou cada tijolo que precisou para construir sua pequena pousada – hoje mais um sonho concretizado.

“Eu nunca tinha pegado num computador. Depois da primeira prova, quando saiu minha primeira nota, tirei 2. Valha-me Deus do céu! Trabalhando oito horas, com filhos, marido, casa pra cuidar, estudando uma hora aqui outra acolá, de madrugada, eu não achava que ia conseguir”, relatou Maria Pereira Rodrigues, a “Baíca”, concluinte do curso de Biologia aos 50 anos.

“Alguns aqui foram alfabetizados por professores que mal sabiam escrever o nome. Há pouco tempo que se tem computador, internet, e ninguém teve curso para aprender a mexer com essas tecnologias. Para nós, não havia muita esperança ou expectativa. Apesar de sabermos que a vida vai continuar sendo dura, a gente também sabe que agora nossa comunidade pode contar com mais pessoas com formação de qualidade para nos ajudar a compreender e a resolver os nossos problemas”, disse a professora Glice Pugas, um dos pilares de apoio local dos estudantes.

É esse forte sentimento de integração que motiva os alunos, em suas monografias, a escreverem sobre a própria comunidade, como uma forma de homenagem e também de contribuição para o desenvolvimento local. Na comunidade do Prata, por exemplo, Saulo, o agricultor que estuda Matemática, e a colega Ana, pretendem abordar, no TCC, metodologias alternativas para o ensino de crianças quilombolas. Já Osirene, vê no mestrado em Educação uma oportunidade de deixar um legado. “Esse é o desejo que eu tenho: deixar algo escrito, ajudar a registrar a nossa história”.

A viagem dos gestores da UFT a São Félix e Mateiros colocou a Universidade frente a frente com uma realidade que não é conhecida por muitos integrantes da Instituição. Para os moradores da cidade, que só conheciam o reitor “das redes sociais”, como disse o prefeito Carlão, foi uma chance de estreitar a relação de parceria com a instituição de ensino federal. E para o reitor e o pró-reitor, que só conheciam o Jalapão por fotos e de “ouvir falar”, a experiência trouxe uma compreensão mais profunda dos desafios da educação na região. “O exemplo dos estudantes nessas comunidades é uma memória muito forte que eu vou levar daqui”, disse o pró-reitor.

“Os relatos que ouvimos reforçam a certeza de que a educação transforma as pessoas e demonstram o quanto o nosso país ainda é extremamente desigual. Por isso eu agradeço essa oportunidade de aprendizado e vou levar essa mensagem para a Universidade, com tudo o que absorvemos aqui”, acrescentou o reitor. “Eu me comovi muito com essas histórias e, com toda humildade, digo que a Universidade precisa se colocar mais próxima da sociedade e das pessoas”, afirmou Bovolato.

Ao final de três dias, o reitor e o pró-reitor encerraram a programação da viagem ao Jalapão com uma simbólica visita a Noêmia Ribeiro da Silva, 66 anos. Matriarca da comunidade Mumbuca, a “Dotôra”, como é chamada pelo seu dom de usar as plantas do cerrado para tratar moléstias, herdou da mãe, dona Miúda, e da tia, dona Laurentina – outros dois ícones do povoado – o grande propósito de incentivar a educação. Na casa de “Dotôra”, os representantes da UFT foram recebidos com um almoço preparado no fogão à lenha, e também com muita emoção. Entre lágrimas que brotaram nos olhos de todos os presentes, eles ouviram da Dotôra palavras de esperança.

Visita à casa de Dotôra, na comunidade Mumbuca (Foto: Bianca Zanella/Sucom)Visita à casa de Dotôra, na comunidade Mumbuca (Foto: Bianca Zanella/Sucom)

“A Mumbuca, essa geração que tá crescendo, é o futuro e o sonho do amanhã. O ‘amanhã’ tem que ter sonho pra acontecer [...], e a gente precisa dar força pra eles agora. No tempo ‘da gente’, a gente não teve condições, mas agora eles podem ter”, disse ela, com a voz embargada, lembrando da luta da mãe e da tia que resultou na instalação de uma escola de educação básica na localidade. “O meu sonho é ver essa geração estudar, realizar o sonho do estudo para que a gente tenha progresso e tenha menos dificuldades na vida. Esse era o sonho de mamãe e da minha tia, e é o meu sonho também”. Para dona Noêmia, “progresso” é algo abstrato que ela não sabe dizer exatamente o que é, mas entende que significa, para a comunidade, mais oportunidades e mais dignidade.

Visivelmente comovido, diante da Dotôra do Mumbuca, o reitor disse que “a Universidade e a comunidade acadêmica precisam ter humildade para reconhecer as diferentes realidades”: “os títulos acadêmicos, sejam eles de bacharel, mestre ou doutor, não são sinônimos de sabedoria, e estar aqui hoje nos proporciona uma clara compreensão disso”.

 

Só mais um sonho

Antes que a visita terminasse, dona Noêmia revelou outro desejo: “Eu queria conhecer o Lula”, disse, sem saber que esse sonho pode estar mais perto do que ela imagina de se concretizar: dias depois, o Conselho Universitário da UFT decidiu conceder o título de honoris causa ao ex-presidente, agora presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. A intenção é que Lula compareça à UFT em 2023, quando a Universidade comemora 20 anos, para receber a homenagem. Se Lula aceitar o convite, há grandes chances do seu encontro com a Dotôra acontecer.

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